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UM MAPA POLÍTICO DO CARNAVAL
REFLEXÃO A PARTIR DO CASO DE SALVADOR
Milton Moura1
1 ANTECEDENTES
A cidade do Salvador se diz a si própria e ao
mundo no seu Carnaval. Esta é a leitura da grande festa dos baianos
que trago ao leitor, num convite a reconhecer, aí, um mapa cognitivo
da sociedade soteropolitana.
Invoco, inicialmente, a cartografia. Em 1549, esta cidade foi fundada
como capital portuguesa do Atlântico Sul. Corresponde ao vértice
ocidental do triângulo armado entre Lisboa, Novo Mundo e Oriente.
As correntes traziam para cá as caravelas na rota que se chamava
a Carreira das Índias; as mesmas que, séculos depois, trariam
o iatista Amir Clink. Quando os portugueses decidiram empreender uma colônia
propriamente dita, e não apenas garantir aqui um entreposto, edificaram
aqui uma cidade antes de tudo fortificada. A própria relação
geológica do sítio com seu entorno confirma esta observação.
Do alto da escarpa, chamada tecnicamente a Falha de Salvador, portugueses,
índios, mouros e mestiços estavam setenta metros acima de
um porto seguro e tranqüilo. Ou seja, tão fácil era
chegar como difícil era subir...
A capital tinha muralhas de pedra, areia e óleo de baleia, para
proteger os colonos dos índios e dos outros europeus. Até
os bichos do mar entraram na sua arquitetura... E era para o mar que se
voltava a primeira catedral do continente americano; no ponto mais elevado
da Falha, o templo maior da religião que chegava de navio. O nome
da cidade era o mesmo do acidente geográfico que a acolheu: Bahia.
E o nome da região que se constituiu como fornecedora de açúcar
para a metrópole não poderia ser mais cartográfico:
Recôncavo. As crônicas dos viajantes e missionários,
os registros dos empórios e do tráfico de escravos, os sermões
e crônicas do Padre Vieira, os poemas de Gregório de Matos,
todos estes registros apontam a importância da cidade no trânsito
mundial, como que se antecipando à noção de globalização,
tão em voga nesta virada de milênio, quando procuramos termos
novos talvez porque não temos tantas novidades assim. A Bahia era
um nó de ventos, mares e navios um pouco abaixo do Equador. Sua
toponímia atesta isto sobejamente: grande parte de seus pontos
e recantos tem nomes que remetem a águas doces ou salgadas.
Nos dois primeiros séculos de tráfico, aos tupinambás
e portugueses acrescentaram-se cativos africanos do tronco banto, numa
proporção que ainda hoje chama a atenção de
quem percorre a cidade. Nos últimos cem anos, ou seja, na segunda
metade do século XVIII e na primeira metade do século XIX,
chegaram cativos jejes e iorubás. Além deles, chegaram a
partir do início do século passado também sírios
e libaneses, além dos portugueses que nunca deixaram de vir, trazendo
ainda seus vizinhos de cima, os galegos. Este é o mapa da constituição
geogenética dos baianos. O que não se costuma perceber é
a singularidade da proporção com que chegam os negros. Bantos
e jeje-iorubás são troncos étnicos bem distintos
entre si. Os cativos do Golfo do Benin eram mais urbanizados, tinham instituições
políticas mais próximas daquelas dos portugueses e as matrizes
religiosas que traziam, tanto o Islam como a tradição dos
Orixás, favoreceram um diálogo menos desigual com o Catolicismo.
Até o início do século XVIII, Salvador era a maior
cidade européia fora da Europa e a maior cidade negra fora da África;
a capital da colônia, enquanto Lisboa era a capital do império.
No bojo do reordenamento dessa relação já em crise,
em 1763, razões geopolíticas levaram a transferir a capital
para o Rio de Janeiro. Era preciso guarnecer os territórios da
bacia do Prata e até, quem sabe, expandir suas bordas, além
de controlar melhor o fisco das lavras. Com a chegada da família
real em 1808, o Rio de Janeiro passava a ser uma capital portuguesa na
colônia.
A Bahia continuava imponente e seu porto, muito movimentado. O açúcar
que daí saía para boa parte do mundo, contudo, era cada
vez menos lucrativo, em virtude da concorrência do Caribe. O Recôncavo
entra lentamente em declínio no final do século XVIII e
Salvador chega ao tempo das Regências como a segunda cidade brasileira.
A partir dos anos sessenta, conhece a decadência, a estagnação
e o isolamento dos circuitos econômicos globais. A representação
política em todo o Império só é menor que
a de Minas Gerais. E mesmo na República Velha o Estado da Bahia
conserva considerável importância. Este é o verbo,
conservar... Até o início do século XX, o porto de
Salvador recebia com freqüência navios da Nigéria e
do Daomé, atestando a continuidade do fluxo cultural entre a Baía
de Todos os Santos e o Golfo do Benin.
Uma cidade que vive inclusive de saudade, no que contribuiu muito a nova
capital, que se referia à anterior como a sede do passado e da
Negritude, uma Negritude diferente daquela do Rio de Janeiro. São
centenas de documentos a mostrar como a cena da Bahia era em parte dominada
pelos iorubás, tão influentes que faziam a contabilidade
das casas de comércio dos portugueses de poucas letras e tentaram
sete vezes tomar a cidade para constituir aí um reino muçulmano.
No Rio de Janeiro, predominavam os bantos entre os negros. As elites políticas
e estéticas da nova capital de tudo faziam para transformá-la
em algo assim como uma Paris no trópico de Capricórnio.
Com o empobrecimento do Recôncavo, acorrem ao Rio de Janeiro levas
contínuas de migrantes negros baianos. A força da presença
dos baianos no Rio de Janeiro se nota no fornecimento de comida no centro
da cidade, no controle do mercado de trabalho no porto, na organização
das maltas de capoeiristas e na formação de casas de candomblé,
sem esquecer da reinvenção dos ternos de Reis, juntamente
com os vizinhos cariocas, mineiros e portugueses. Nos anos vinte, os baianos
participariam da formação das primeiras escolas de samba,
sendo que os nomes de algumas delas, inclusive em São Paulo, incluíam
o termo baianinhas.
Mais tarde, quando o Brasil começou a organizar sua imagem diante
do grande mundo pelo rádio e pelo cinema, buscou nos ícones
baianos um recurso exitoso. A figura de Carmem Miranda, portuguesa cantando
nos Estados Unidos, era brasileira principalmente porquanto sua indumentária
era a da tradicional baiana e seu repertório incluía referências
freqüentes à Bahia, sobretudo aquele de Dorival Caymmi e Assis
Valente, dois baianos no rádio carioca.
2 O CARNAVAL DOMÉSTICO
Dormia a velha cidade da Bahia, envolta em seus sonhos
presentes de uma grandeza passada, enquanto elaborava cuidadosamente suas
próprias referências. Nos últimos Carnavais do século
XIX, viu o cortejo da Embaixada Africana e dos Pândegos da África,
blocos de negros que queriam trazer para a Cidade Alta os ícones
de sua terra original 2 . Muito ordeiramente, como exigiam
os governantes, a polícia e as gazetas, essas entidades faziam
um corso africano. As elites baianas as olhavam ao mesmo tempo com admiração,
curiosidade, desconforto e hostilidade. Afinal, não poderia não
ser ambivalente a familiaridade praticada entre setores tão diferentes
e desiguais de uma mesma sociedade. Essas elites empenhavam-se em percorrer
as ruas da cidade em corsos remontando aos Carnavais civilizados de Nice
e organizar, um pouco mais tarde, bailes em clubes em que pudessem se
sentir entre máscaras de Veneza. Como parece pequeno o oceano quando
se trata de modelos de civilização... Tudo menos aquele
entrudo de brincadeiras tão divertidas quanto sujas, coisa mesmo
dos portugueses de antigamente, de que tanto gostavam também os
negros. Que ironia... o mesmo estereótipo cultivado pelos alemães,
ingleses e franceses, ao dizerem que a África começa nos
Pirineus, encontrava correspondência na maneira como as elites baianas
olhavam o seu passado.
Os afoxés, que os grandes etnólogos do início do
século chamavam de o candomblé na rua, procuravam administrar
a dificuldade de se apresentar associando sua imagem ao ícone do
índio brasileiro. Desta forma, as florestas e praias africanas
tomavam emprestado imagens das florestas e praias baianas, coisa que os
caboclos do candomblé banto já faziam há uns duzentos
anos, de forma que não se pode nem faz sentido distinguir de que
continente seria originário este ou aquele aspecto desses afoxés.
Para compreender este trânsito e esta familiaridade com o mapa mundi,
convém mirar os nomes de alguns caboclos: Sultão das Matas,
Neve Branca, Rei da Hungria...
Na primeira metade do século passado, era mais fácil perceber
como a geografia do Carnaval correspondia à estratificação
étnica e social de Salvador. As elites divertiam-se com o corso
tocando aberturas de ópera e as pranchas cantando maxixes e marchinhas,
em delicado Carnaval sem brigas; suas famílias levavam para a rua
cadeiras, bancos e sofás, como que continuando suas salas de visita.
O povo fazia sua patuscada pelos bairros, pelos vales, na Baixa dos Sapateiros,
na Barroquinha. Desde o século XIX, saíam às ruas
blocos de mascarados chamados cucumbis, vários deles ligados às
casas de candomblé 3 . Tudo se reconfigurava como batucada.
Em alguns momentos, também os mais pobres passavam pelas ruas do
centro da Cidade Alta, mas não como cortejo prestigiado, o que
era privilégio das grandes sociedades - Cruz Vermelha, Fantoches
da Euterpe e Innocentes em Progresso - e de sociedades menores que procuravam
imitá-las.
Num caso como no outro, o clima era de alegria e descontração,
estando as partes da cidade bem delineadas em seus lugares também
no Carnaval. Pequenos grupos de homens travestidos vagavam por toda parte.
Nos bairros mais pobres, como em toda a Cidade Baixa e nos vales próximos
do centro, sobreviviam antigas tradições de portugueses,
índios e africanos. Misturando-se, produziram sínteses como
diversas formas de pequenos grupos totêmicos, levando à frente
o emblema de algum animal, sendo o mais freqüente o urso, sonolento
habitante das montanhas da Europa que jamais esteve na América
do Sul.
As mudanças alegorizavam a diversidade das condições
de moradia. Por um lado, ironizavam o costume dos ricos expor sua mobília,
sua prataria e seus trajes de luxo por ocasião das mudanças
de residência e de algumas procissões. Por outro lado, carnavalizavam
a própria precariedade das casas populares, levando em carroças
objetos imprestáveis e rindo de tudo, até depositarem colchões
cheios de percevejos, penicos imprestáveis e restos de máquinas
de costura em frente aos prédios do governo. Eram uma representação
radical em termos plásticos: o bairro vinha como volume de trastes
para ser depositado na rua, assim como nos afoxés era o terreiro
que passeava pelo centro da cidade.
3 O CARNAVAL DAS CORPORAÇÕES
Blocos de pessoas com idades próximas e mesma
profissão são encontrados nos registros da imprensa desde
o início do século passado. Costureiras, cozinheiras, alfaiates...
Em alguns bairros, como Roma, ser vizinho era quase sempre ser operário
das tecelagens ali sediadas. Na verdade, era mais familiar que profissional
o vínculo que lhes unia. Quem sabe, poderíamos dizer que
eram pequenas ou médias corporações familiares...
aliás, quem pode mesmo dizer onde começa e acaba a família
numa sociedade tradicional como Salvador?
Somente na metade desse século é que se percebe a presença
mais pujante de alguns grupos profissionais na cena do Carnaval. Trata-se
justamente dos dois setores que primeiro acordaram do marasmo em que se
encontrava mergulhada a Bahia há décadas.
Vamos assistir, em 1949, ao primeiro cortejo do afoxé Filhos do
Gandhi, formado por estivadores, boa parte deles sindicalizada; os Filhos
do Mar, de estivadores também; e os Filhos do Fogo, de bombeiros.
Claro que cada associado podia trazer amigos, vizinhos e parentes, categorias
que não diferiam tanto assim na Salvador de então. Os motivos
das fantasias eram aqueles dos filmes sobre o Oriente. O fausto dos palácios,
haréns e templos árabes e indianos encantava os foliões
dos blocos, que viam nessa associação uma forma de se identificar
com o mundo da riqueza, do êxito e da prosperidade que contrastava
com sua situação de trabalhadores braçais lutando
por melhorias de salário. Para os estivadores que mantinham conexão
com quadros de esquerda, a associação com a figura do Mahatma
Gandhi fazia especial sentido. Na época, contudo, os Filhos do
Gandhi e os Filhos do Mar eram associados ao porto e suas adjacências,
o comércio pobre e as ruas de prostitutas.
Com o advento da Petrobrás, em 1953, cria-se um operariado negro
baiano, cuja renda se diferencia nitidamente daquela da maioria dos outros
trabalhadores. Esses petroleiros reforçam então a temática
orientalista e se tornam Mercadores de Bagdá, com trajes brilhantes,
efeitos de luzes e sons, cavalos naturais, camelos de camurça,
etc. Era a geografia do Carnaval que combinava a roupa dos marajás
com o ritmo ijexá, que no candomblé é tocado para
vários orixás, e as cantigas do rádio. Os músicos
cultivavam também os ritmos caribenhos, visitando à noite
os navios cubanos para aprender rumba, merengue, salsa, calypso, etc.
Não é verdade que até então tudo vinha por
mar? por que seriam exceção as novidades musicais? O mapa
do Carnaval não respeitava nem meridianos nem paralelos; quase
tudo podia ser combinado. Os músicos desses blocos tocavam repertório
romântico no Rumba Dance e no Tabaris, os cabarés mais finos
do centro da cidade...
Nos anos sessenta, as atrações mais apreciadas do Carnaval
eram certamente as escolas de samba, os blocos de índio e os blocos
de embalo.
As escolas de samba copiavam o modelo carioca, sem jamais reunir um grande
número de figurantes. Tiveram vida efêmera, dissolvendo-se
em pouco mais de dez anos. Eram fortemente fincadas em seus territórios,
tanto que se chamavam Juventude do Garcia, Filhos do Tororó, Ritmos
da Liberdade, Acadêmicos de Amaralina, etc. Seu refluxo se deu inclusive
em virtude do sucesso acachapante de um novo modelo de organização
carnavalesca: os blocos de índio, cujas letras e indumentária
se referiam à principal atração da juventude popular
naquele tempo: os filmes de faroeste que empolgavam as turmas que freqüentavam
entusiasticamente os cinemas. Esses blocos eram contínuos aos mesmos
bairros, como também se via nos nomes: o Cacique do Garcia e os
Apaches do Tororó, os maiores, além dos Comanches, Tupis
e Sioux. Os jovens e adolescentes dos bairros populares mais próximos
do centro se faziam tribos destemidas e aguerridas. Assim como os apaches
enfrentavam o exército norte-americano no cinema, os rapazes dos
blocos de índio enfrentavam a polícia na rua.
Territorialidade e familiaridade eram as bases sociais comuns desses modelos.
A isto se acrescenta a presença das tradições religiosas
de origem africana e indígena. Os Filhos de Gandhi fazem oferendas
a Exu na sua primeira saída do ano. Os afoxés e cordões
visitavam as casas de candomblé, como o Gantois, antes do cortejo
de domingo. Mãe Menininha do Gantois ofertava uísque aos
diretores do Gandhi, antes do cortejo dominical...
Alguns se perguntam, ainda hoje, por que a remissão aos apaches,
comanches, sioux... Ora, o próprio governo municipal contribuiu
para relativizar as noções tradicionais e estritas de território.
Bairros e invasões inteiros foram destruídos com as obras
de modernização a partir de 1968, sendo seus moradores relocados
em conjuntos distantes. O próprio território da tradição
mostrava-se móvel, como tanto gostam de dizer Gilroy e Hall 4
. Por que pareceriam distantes os índios que enfrentavam os cowboys
e os soldados norte-americanos? Tão próxima era a presença
desses guerreiros na tela que os apacheiros não hesitaram em empunhar
o oxê, machado de Xangô.
Quanto aos blocos de embalo, constituíam-se de forma mais simples,
sem motivos especiais. Enquanto as escolas de samba e os blocos de índio
tinham repertório próprio, os blocos de embalo, como o Barroquinha
Zero Hora e o Vai Levando, cantavam quase sempre as marchinhas do Carnaval
carioca divulgadas pelo rádio. Próxima desta tradição
foi a criação do primeiro trio elétrico pelos eletrotécnicos
Dodô e Osmar e alguns amigos, acoplando recursos técnicos
desenvolvidos por eles enquanto profissionais a novidades como a visita
de grupos de frevo pernambucano 5 . A música do trio
é uma eletrização do frevo pernambucano, que desde
os anos cinqüenta acumulou antropofagicamente diversas influências,
num ritmo que se acelerou nos anos oitenta.
Nesse período, as classes médias passaram a organizar também
blocos mais seletivos, como os Internacionais e os Corujas, plasmando
um modelo masculino de beleza carnavalesca baseado na cor clara e na aparência
garbosa; enfim, eram vitoriosos...
O crescimento do número e do tamanho dos blocos acompanhava o desenvolvimento
demográfico da cidade. A partir dos últimos anos sessenta,
Salvador começava a inchar, recebendo anualmente consideráveis
levas de migrantes à procura de empregos, o que se radicalizou
com a instalação do Centro Industrial e Aratu e, sobretudo,
do Pólo Petroquímico de Camaçari, em 1975.
Os conflitos passaram a se verificar na própria cena do Carnaval.
Os blocos de índio somavam milhares de associados nos anos sessenta.
Eram quatro mil os apacheiros em 1977, quando se deu um combate com a
polícia que em pouco deixou a dever ao que se passava na tela,
aos domingos 6 . As próprias elites ofereciam como que
a contraprova de que o recurso iconográfico aos filmes de faroeste
não era sem razão: os soldados dos brancos reprimiram de
forma truculenta os temidos guerreiros apaches, que tiveram que se contentar
com uma composição reduzida e passaram a refluir, como os
outros modelos de bloco.
O Pólo Petroquímico criou um novo tipo de operário.
Negro e próspero, como o petroleiro, e além disso sintonizado
com movimentos políticos e culturais em algumas partes do mundo.
As lutas políticas nos novos países africanos, a explosão
dos ritmos caribenhos e o sucesso de algumas bandas de cantores negros
norte-americanos desencadeou uma onda de afirmação do fenótipo
ex-africano em Salvador, que se expressava principalmente no uso de alguns
adereços e do cabelo black power ou rastafari, ou seja, as dread
locks. Este novo tipo de juventude, numa cidade em que as novidades chegavam
com pulsações diferentes a cada dia, formou os blocos afro
e novos afoxés.
Na verdade, o afro é um vetor cultural mais amplo e diversificado
que o tipo de organização carnavalesca em que passou a se
expressar institucionalmente, o bloco afro. A recepção das
notícias sobre a independência dos países africanos,
a partir de 1960, era mais uma forma de cultivar o vínculo com
a África. Os ritmos do Caribe soavam como não precisamente
africanos, mas nem por isso menos negros. Foi então que a noção
de Diáspora se difundiu e consolidou entre os artistas e intelectuais
e, de modo difuso e não menos eficaz, entre os bairros populares
de Salvador. O ska, o merengue, o capypso e outros ritmos aos poucos cederam
diante da magnitude do reggae, associado à cultura de contestação
da sociedade de hegemonia branca e capitalista, tendo como seu grande
inspirador o jamaicano Bob Marley.
Dentre os primeiros, o bloco afro que sobreviveu é o Ilê
Aiyê 7 , criado em 1974. É um marco singular na
história do Carnaval, tendo dado forma institucional ao afro como
vetor cultural e gramática de identificação. O afro
pode ser compreendido como uma referência contemporânea da
Negritude, associada a outras formas de afirmação da mesma
Negritude em todo o mundo da Diáspora Negra, e solidamente assentada
sobre a revalorização alegórica do passado africano,
exaltando impérios e figuras lendárias.
O repertório dos blocos afros e dos novos afoxés, como o
Badauê, era divulgado pelas praias, nos ônibus, em ocasiões
menos formais, etc. A imprensa não participou deste processo no
início. Na virada dos anos oitenta, formaram-se vários outros
blocos afro, sendo os mais importantes até hoje o Olodum e o Araketu.
O Muzenza, aquele mais identificado com a tradição do reggae,
encontra-se hoje em refluxo, itinerante e marginal como os grandes nomes
do reggae e como seus associados mais típicos.
Nesse período, alguns artistas de sucesso, como Gilberto Gil e
Caetano Veloso, assimilaram motivos musicais do Ilê Aiyê,
do Badauê e dos Filhos de Gandhi, integrando-os aos circuitos da
mídia. Nessa época, os elétricos Dodô &
Osmar e Tapajós eram sustentados pelo anúncio de fabricantes
de bebida. Mesmo os primeiros sucessos carnavalescos de Caetano Veloso
não se referiam a ícones de africanidade. Era a cidade do
Salvador feliz com seu Carnaval.
A partir de 1978, Moraes Moreira, com alguns parceiros notáveis,
como Antônio Risério e Fausto Nilo, realizou uma síntese
de batucada, ijexá e frevo elétrico, criando um estilo próprio
que se manteve com sucesso até o final dos anos oitenta. O conjunto
Os Novos Baianos também ensaiou uma interface de diversos destes
estilos, em várias de suas composições.
4 O CARNAVAL DA MÍDIA
A presença do Carnaval na mídia antecedeu
a presença dos agentes da mídia nos territórios originários
do Carnaval. Os artistas que participavam do mundo do afro, ou seja, circulavam
nos meios em que a nova referência da Negritude se consolidava,
tomaram a iniciativa de procurar os canais da mídia quando já
faziam considerável sucesso, e não o contrário. Dois
destaques devem ser feitos neste processo que se deu sobretudo nos anos
oitenta.
Um deles é a síntese empreendida por Luiz Caldas entre o
frevo elétrico, o ijexá e os ritmos caribenhos. Este modelo
de música foi rapidamente absorvido pelos blocos que se organizavam
ou consolidavam então para promover o Carnaval das classes médias,
notando-se aí considerável diferenciação nos
padrões de seus associados. Teve importância, aí,
a cantora Sarajane. O outro é a síntese de Gerônimo
entre o samba e a salsa 8 . Sua composição Eu
sou negão, em 1986, apresenta como numa ópera a conflitividade
entre latente e explosiva correspondente à diversidade cultural
numa cidade tão integrada quanto desigual. Era a reedição,
nos anos oitenta, do conflito entre a Embaixada Africana e o corso das
elites. A África e a Europa brigando na Praça Castro Alves,
como aconteceu durante séculos, na Península Ibérica,
entre cristãos e mouros.
A partir daí, observa-se a aproximação progressiva
entre setores da mídia e os blocos como instituição.
Há uma corrida dos compositores e intérpretes às
gravadoras e emissoras, todos querendo abrir um espaço de audiência
para seu trabalho. As referências geográficas acompanham
essa ânsia de tudo mostrar; algumas composições falavam
de diversas partes do mundo ao mesmo tempo, desafiando qualquer cartografia
convencional. Os blocos afro, sobretudo o Olodum, com a composição
Faraó, de Luciano Gomes dos Santos, também de 1986, são
interfaces em que as referências mais diversas de sociedades humanas
se encontram aos efeitos de propor uma outra configuração
para a sociedade de Salvador 9 . Este movimento cultural foi
duramente criticado pelos intelectuais acadêmicos e pela imprensa,
pois suas referências iconográficas não estariam respeitando
a historiografia e a geografia corretas... Os compositores, líderes
e demais associados, quando entrevistados, respondiam "absurdos"
como: a sede do Muzenza é a Jamaica, velho, que é a cabeça
de Marley.
Quase todos os blocos de todos os tipos passavam a falar dos reis africanos
e dos regueiros jamaicanos. A pobreza e a sede de sucesso e prosperidade
dos jovens artistas negros se encarregava de azeitar este processo, associado
a um notável crescimento das instituições do Carnaval
de Salvador. O cortejo das entidades era muito mais denso que nos anos
sessenta. Os blocos passaram a ocupar a maior parte das ruas, mantendo
os foliões sem uniforme restritos aos passeios e praças.
Vários blocos se reconfiguraram, como Os Internacionais e Os Corujas,
que se tornaram blocos de trio; o Camaleão, que praticamente se
identificou com a banda Chiclete com Banana e assumiu, como os Internacionais,
padrões empresariais de gerenciamento 10 ; e o Araketu,
que sintetizou em seu modelo o trio elétrico e a origem de bloco
afro. Alguns cantores de sucesso montaram blocos que se apresentam hoje
como sua extensão.
As cordas que separam os associados dos outros foliões existiam
até os anos sessenta existiam para identificar o grupo. Nos anos
setenta e oitenta, eram necessárias para proteger os associados
contra as investidas das galeras e para manter o próprio território.
Na virada dos anos noventa, a corda avança contra a multidão,
tendo que conquistar o espaço folgado para seus foliões
de classe média. Há um gigantesco aparato paramilitar para
manter essas cordas, com coordenadores de segurança, supervisores
e cordeiros, podendo estes chegar a seiscentos numa só entidade.
É interessante observar como o próprio centro geográfico
do Carnaval se movimenta no seu repertório. Nos anos setenta, pela
força da figura de Caetano Veloso, do trio elétrico Dodô
e Osmar e de Moraes Moreira, o centro era a Praça Castro Alves,
emblemática da multidão solta, ao momento integrador do
delírio geral. Também a Avenida Sete comparecia freqüentemente
às letras. A partir da presença do Ilê Aiyê,
as letras passaram a falar do Curuzu e da Liberdade, onde não há
Carnaval propriamente dito... Era o triunfo do afro, que se reeditaria
com mais força ainda com o sucesso estrondoso do Olodum, com as
canções remontando ao Egito dos faraós. Que notável
inversão simbólica! o Centro Histórico degradado,
cheio de prostitutas, travestis, traficantes e contraventores, associado
ao sofrimento dos escravos, no centro temático do Carnaval. Como
reação a isto, os blocos de trio montaram outra capital.
A partir de 1987, o Carnaval alcançava também a orla marítima,
no trecho Barra-Ondina. O novo ícone da geografia carnavalesca
da cidade passava a ser, então, o Farol, associado à imagem
dos bairros emblemáticos das elites, um dos maiores cartões
postais de Salvador. espécie de cartão postal o que se disseminava
por todos os blocos, sendo que a iconografia da praia, do bronzeado e
do sol não deixou de alcançar também os blocos afro.
Ainda o destino da cidade se manifesta no novo centro do Carnaval. O Farol
se situa exatamente no ponto em que a Baía de Todos os Santos lança
no Atlântico as águas do Sertão. A fortaleza, que
desde o final do século XVI guarnecia a entrada do golfo, passava
a sediar em seu entorno os encontros de trios elétricos.
Assim como a imagem tradicional da Negritude brasileira remete à
Bahia, aos baianos e baianas, também na constituição
de uma nova imagem a Bahia é central. As bandas do Carnaval de
Salvador alcançam o Brasil inteiro, vendendo muito disco - sobretudo
nos primeiros anos noventa - e consagrando artistas nacionalmente, como
as bandas Chiclete com Banana, Asa de Águia e Cheiro de Amor e,
principalmente, Daniela Mercury. Na segunda metade dos anos noventa, o
sucesso sorriu para Netinho e Ivete Sangalo, devido também a conexões
com outros ritmos e repertórios. As bandas podem se formar da noite
para o dia, a depender de como se articulem produtores, gravadores, empresários
e artistas.
O sonho dos novos artistas do Carnaval é integrar o panteão
da world music. Quem bem expressa esse projeto é a Timbalada, chamada
afropop pelo líder e compositor Carlinhos Brown 11 .
O Olodum chegou perto disto a partir das conexões com Paul Simon
e Michael Jackson 12 . E o que seria mesmo a world music senão
a globalização pela mídia do que se convencionou
chamar étnico, ou seja, aquilo que se coloca como contrastivo da
cultura ocidental de matriz anglo-saxã? Que o digam Madona, Michael
Jackson, Alpha Blondi... Ora, para os ingleses e norte-americanos, a world
music é a música dos outros na casa deles.
A imagem da Bahia permanece vigorosamente associada à comida, à
religião, à musica e à dança de origem africana.
Salvador continua sendo a grande capital negra do Brasil, onde se localiza
propriamente a afroascendência dos brasileiros. Talvez isto contribua
para dispensar os brasileiros como todo de pensarem sua Negritude, uma
vez que um território circunscrito a um Estado já se encarrega
de ser a África no Brasil, ao mesmo tempo que continua sendo o
ícone do passado re-presente, em termos de instituições
políticas.
Em praticamente todo tipo de ocasião festiva pública e especialmente
nas campanhas eleitorais, a associação entre grandes artistas,
líderes religiosos tradicionais e integrantes dos blocos governistas
hegemônicos há trinta anos não deixa dúvidas
de que esta dinâmica é representativa do próprio ethos
a que se tem chamado, nos últimos anos, de baianidade, cujo conteúdo
mais axial é a própria adjacência da desigualdade.
A última delas parece ter sido a inversão do sinal do estigma
correspondente à cor escura. Ser negro passou a ser belo, digno
e valoroso, desde que integrado à dinâmica da baianidade.
A Bahiatursa, órgão do governo estadual que administra o
setor turístico, em parceria com o órgão municipal
respectivo que organiza o Carnaval, se encarrega de manter e divulgar
a imagem da Bahia pluriétnica, com gente negra e mestiça
sorrindo, cantando, dançando, servindo comida, seduzindo, amando,
em que todos estariam convivendo mais ou menos felizes. Os orixás,
após terem seus templos invadidos e desrespeitados até os
anos quarenta do século passado, são agora emblemáticos
da propaganda turística. É significativo que Oxum seja identificada
à mulher bela, vaidosa e dengosa, que dança, cozinha e encanta,
enquanto outros atributos do orixá permaneçam de fora desta
reconfiguração.
5 CONCLUSÃO OU O CARNAVAL DA LIMINARIDADE
A disputa de território, no Carnaval de Salvador,
não é uma figura de linguagem apenas. Isto pode ser facilmente
verificado na própria cena dos cortejos, como também na
maneira como os diferentes tipos humanos se cotejam e se enfrentam na
cidade durante o verão, estação em que a exposição
do corpo é mais freqüente e prolongada, quando há uma
afluência considerável de turistas e o consumo de bebidas
é exacerbado. Para perceber a força do Carnaval como comemoração,
é preciso manter presente a intensidade da sua cena de rua, a quantidade
de expectativas e investimentos pessoais que levamos à rua, várias
horas durante vários dias.
O crescimento da auto-estima dos jovens e adolescentes negros e mestiços
intensificou a dinâmica de aproximação e fricção
entre os mais claros e mais escuros numa cidade em que quase ninguém
corresponde aos pólos fenotípicos idealmente puros. A própria
cultura de Carnaval é ao mesmo tempo o eixo mais dinâmico
desta aproximação ambivalente, em que os sujeitos se atraem
e se repelem, se amam e se odeiam, se desejam e se repugnam, e a ocasião
em que isto se experimenta com todas as cores, sabores e odores da excitação.
A guerra não está apenas entre os que estão dentro
e fora das cordas dos blocos, ou entre os que subiram aos palanques e
aqueles que olham os palanques desde baixo. Está principalmente
entre os tipos que toda esta dinâmica estética produziu e
que no Carnaval encontram seu palco principal.
O esforço por compor uma imagem da Negritude que possa se legitimar
diante de todos desaguou na plasmação de um tipo de jovem
negro caracterizado por traços moderados de rosto; cabelo bem cuidado,
muitas vezes com produtos químicos; adereços de conotação
étnica entre as jovens; entre os rapazes negros, a forma física
apolínea. Alguns desempenhos, como as coreografias e a capoeira,
acontecem como formas paradigmáticas de ser negro ou negra. A sensualidade
é o maior atributo dos jovens negros nesta nova configuração
estética, e o que mais se cobra desses jovens.
Os jovens de classe média correspondem ao padrão veiculado
pelas revistas de moda. Devem também estar bem cuidados em termos
de forma física e usar roupas que os distingam da plebe. O uso
de alguns equipamentos, como o telefone celular, é um item indispensável
nesta dinâmica de reconhecimento, razão pela qual os jovens
negros se apressam em adquiri-lo, na prática espetacular do consumo
conspícuo.
É a corrida pela legitimação estética, que
se observa na legitimidade com que os diferentes tipos se apresentam na
cena urbana. Dentro das cordas, os indivíduos, quase sempre de
pele mais clara, não precisam se destacar tanto. Já se sabe
por que estão ali: porque puderam pagar o carnê do bloco,
havendo evidentemente ingressos de diferentes preços. É
na calçada, no passeio, que se pode observar a configuração
da hierarquia da beleza, da legitimidade estética, do direito de
existir bem na microgeografia carnavalesca de Salvador. Quem se especializou
no apuro de seu tipo, seja mais claro, seja mais escuro, ocupa o meio
fio, zona de liminaridade em que o personagem destacado se encontra à
frente de seus pares e em frente dos outros concorrentes. Este é
o centro do Carnaval de Salvador, hoje. O lugar de onde os exitosos podem
olhar os outros com o sorriso de vitória de quem, de cima do pódio,
olha os não vencedores ou derrotados.
Os outros, aqueles que não têm lugar nem nos blocos de trio
nem nos blocos afro e que não se distinguem na multidão
dos que se aproximam das cordas desses blocos, espremem-se pelas calçadas
e pelas transversais, ocupam os fundos e os interstícios, comprimem-se
entre a muralha de cordeiros e os notáveis no meio fio. Alguns
deles ensaiam desempenhos coreográficos como as brigas de malhados,
praticam pequenas subtrações do patrimônio alheio
para custear o consumo mínimo de bebidas e aguardam os momentos
periféricos, como a madrugada, e os lugares periféricos,
como as transversais e recantos mal iluminados, para realizar suas fantasias.
Ao mesmo tempo em que temos aí uma dinâmica de fricção
entre os mais claros e mais escuros, entre os mais ricos e mais pobres,
temos também, no código de comportamentos do Carnaval, a
lubrificação dos indivíduos e subgrupos para que
os movimentos se dêem sem choques. A enunciação dos
textos que configuram as identidades, ou melhor, o processo dramático
e contínuo de identificação numa cidade tão
plural como Salvador, se dá de forma exemplar nos dias da folia.
É a geografia do Carnaval de Salvador, que reedita a cada ano o
que foi possível realizar no processo de construção
de identidades na capital brasileira da Negritude e do passado. O que
resulta é quase sempre a consolidação de uma estrutura
tão familiar quanto ambivalente, tão integrada quanto tensa,
tão bela quanto dramática de uma cidade singular. Aí
se representa e se experimenta, com nitidez e vibração,
o dramático encontro barroco entre o passado e o futuro e o não
menos dramático encontro civilizatório entre a eurodescendência
e a afrodescendência. Tudo isto bem perto do mar, seja no alto da
Falha Geológica, seja na barra da Baía...
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Massachusetts/Cambridge : Harvard University Press, 1996. 261p.
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n. 5, CEAO/UFBA, 1980. 15p.
NOTAS
1 Professor do Departamento de Sociologia da UFBA. Desenvolve
pesquisa sobre práticas estéticas, política e religião.
2 Ver Raphael Vieira Filho (1995, 1997).
3 Pierre Verger (1980) reúne registros preciosos destes
cucumbis.
4 Paul Gilroy (1995) e Stuart Hall (cf. Morley & Chen,
1996) são referências fundamentais no tratamento contemporâneo
da Diáspora e da questão da identidade negra.
5 A referência mais completa sobre os trios elétricos
é a pesquisa de Fred Góes (1982, 2000).
6 O único trabalho acadêmico sobre os blocos de
índio foi escrito por Antônio Godi (1991).
7 Ver Antônio Risério (1981) e Michel Agier (2000).
8 Goli Guerreiro (2000) apresenta uma série de crônicas
sobre este período e os desdobramentos desta interface musical.
9 Ver Moura (1987).
10 Paulo Miguez (1996, 1998) é a referência mais
completa do aspecto organizativo do Carnaval soteropolitano.
11 Ver Ari Lima (1997).
12 Este processo é discutido por Petra Schaeber (1997,
1999).
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