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OS ASSALTANTES DO CÉU

Mauro C. B. de Moura 1



As enormes legiões de turistas que visitam Paris, em qualquer estação do ano, são um testemunho eloqüente do irresistível fascínio que a cidade exerce sobre pessoas do mundo inteiro. Paris resplandece por seu charme e encanto, como símbolo de sofisticação, pela alta costura, culinária, perfumes, por seus maravilhosos monumentos arquitetônicos, seus museus, sua invejável tradição cultural, berço de importantes movimentos artísticos nos campos da pintura, escultura, teatro, dança, música, literatura, mas, também, conviria nunca esquecer, pelo exemplo heróico de seu povo. Da Bastilha à revolta estudantil de 1968, a "Cidade Luz" tem sido pródiga de exemplos libertários que a tornaram uma referência permanente a iluminar os caminhos da humanidade.
A Revolução de 1848, que se irradiou por toda Europa e que teve entre suas conseqüências a grande reforma urbanística preconizada por Eugène Haussmann, que terminaria influindo, indiretamente, no espaço de tantas cidades pelo mundo afora (no Rio de Janeiro, com a construção da Avenida Central, depois Rio Branco, sob os escombros do casario antigo e do Morro do Castelo e em Salvador, com as Rua Chile e Av. 7 de Setembro, etc.) com os inevitáveis Boulevards, bastiões de um urbanismo que se queria imune às barricadas propiciadas pelo traçado medieval das ruelas da cidade antiga. Nada disso evitou, porém, a eclosão da Comuna de Paris de 1871, episódio dos mais importantes da história mundial, que agora completa 130 anos e que, como a revolução anterior, teve, como cronista, nada mais, nada menos, do que Karl Marx, atento observador do cenário político francês do século passado, e cujos comentários e pontos de vista ficaram imortalizados em, pelo menos, três famosas obras: A Lutas de Classe na França de 1848 a 1850, O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte e A Guerra Civil na França, esta última integrando os manifestos redigidos em nome da Associação Internacional dos Trabalhadores acerca da conjuntura relacionada à Guerra Franco-Prussiana e seus desdobramentos no massacre da Comuna de Paris.
Tal aniversário, sem embargo, não é uma simples efeméride que se tenta resgatar do esquecimento, num justo preito à memória de seus milhares de heróis anônimos, mas uma experiência ímpar de gestão democrática, aliás, radicalmente democrática, que a sanha covarde de seus algozes jamais conseguirá apagar. Após a humilhante derrota do exército francês pelo da Prússia e o subseqüente cerco à cidade de Paris, sua população foi obrigada a assumir a própria defesa. O desenrolar dos acontecimentos, a partir daí suscitados, culminaram com a invasão da cidade por um exército francês, em nome do Governo sediado em Versalhes e chefiado por um conhecido intelectual: o historiador Thiers, autor de vasta obra.
Foi sob seus auspícios, o que mostra que um canalha letrado pode ser tão ruim ou até pior do que qualquer outro, que as tropas francesas, com a chancela dos invasores prussianos que a sitiavam, ocuparam a cidade, massacrando dezenas de milhares de seus defensores, inclusive mulheres e crianças, muitos dos quais sumariamente fuzilados, de modo a que não houvessem sobreviventes. Os combates pelas ruas de Paris duraram sete tenebrosos dias e incluíram enfrentamentos corpo-a-corpo, como o do famoso cemitério Père Lachaise e no dia 28 de maio de 1871 caem os últimos focos de resistência. Os cronistas da época relatam que era comum entre os communards enfrentar o pelotão de fuzilamento dando a voz de fogo: "-Vive la Commune!" Era a França atrabiliária e arcaica dos "rurais" que sufocava aquela que sonhava com o futuro, cultivando os ideais semeados nas revoluções anteriores! Qual o crime hediondo que teriam cometido estes homens, mulheres e crianças, para que merecessem tal sorte das mãos de seus próprios compatriotas, que preferiram confraternizar com o exército estrangeiro de ocupação, até há pouco inimigo, fazendo capitular o bastião da resistência nacional?
Os communards, "assaltantes do céu", conforme o epíteto de Marx, ousaram constituir um governo irrestrita e radicalmente democrático, estabeleceram uma democracia direta, sem subterfúgios e o exemplo não podia ser tolerado! A organização da Comuna era extraordinariamente simples: todos os cargos públicos eram eletivos e revogáveis ad nutum, estavam submetidos ao sufrágio dos cidadãos, inclusive os conselheiros municipais, que eram responsáveis perante seus eleitores e poderiam ter seus mandatos revogados a qualquer momento pelos mesmos (Que diferença para as votações secretas de nossos parlamentares!!!). Os salários dos servidores públicos não poderiam ultrapassar os dos operários em suas respectivas atividades e, segundo Marx, "os funcionários judiciais deviam perder aquela fingida independência que só tinha servido para disfarçar sua abjeta submissão aos sucessivos governos".
Os communards constituíram, assim, um governo, não apenas barato, mas onde o espetáculo tristemente recorrente da "vassoura" janista, da quartelada "redentora" ou do flamante "caçador de marajás", enfim, da corrupção como fenômeno permanente, simplesmente não tivesse lugar! Além do mais, revelando a grandeza de sua vocação universal, nenhuma restrição de direitos era imposta pela Comuna aos estrangeiros residentes (vários, inclusive um alemão, ocuparam posições proeminentes), diferentemente do apanágio da "globalização", que defende a livre circulação de mercadorias e capitais, porém restringe ferrenhamente, com passaportes e vistos, a mobilidade das pessoas...
Os 130 anos da Comuna de Paris devem servir para a nossa reflexão, inclusive sobre o legado teórico de Marx. Se o Manifesto Comunista (1848) serviu de inspiração, pelo programa de centralização estatal aí preconizado, para o chamado "socialismo real", a experiência da Comuna de Paris sugeriu a Marx, não um modelo, que alguma brilhante construção mental pudesse engendrar, mas, um exemplo concreto, oferecido pela própria realidade histórica, mais valioso, portanto, do que qualquer teoria. O caráter heróico e generosamente libertário da democracia radical implantada pelos communards seguirá inspirando as gerações futuras!

1 Mauro Castelo Branco de Moura é professor do Departamento de Filosofia da UFBA e integra o Grupo de Pesquisa Marx no Século XXI

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